terça-feira, 11 de agosto de 2009

Poesia pra que te quero?













Sempre gostei de ler poesia. Exagero. Lembro-me mais ou menos da segunda fase do curso fundamental (era assim que se chamava no tempo em que fiz o antigo ginasial). Estava na sexta série quando descobri os versos de Cecília Meireles, por meio de meu professor de português: Paulo Afonso Carneiro. Aliás, foi com ele que descobri a literatura de uma forma geral. Já gostava de ler antes, mas não tinha muito método.

Um dia em uma aula de português, Paulo Afonso apresentou Cecília Meireles para a turma. Eu me apaixonei por ela. Queria ler todos os seus poemas e não me contentei com o Motivo, presente no meu livro de texto que integrava a grade curricular do curso.

A solução foi a biblioteca do Lyceu de Goiânia. Foi lá que passei muitas tardes (muitas vezes matando aula) lendo O Romanceiro da Inconfidência, Nunca Mais... E Poemas dos Poemas. Todo ano quando começava o período letivo, eu copiava o poema abaixo na primeira paina de meu caderno de português.



Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples tão certa tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

a minha face?.




Cecília Meireles sempre foi minha poeta predileta. Aguçou-me a fome por poesia. Fome que tentei saciar lendo Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira
Ana Cristina César foi a primeira poeta moderna a entrar na minha lista de prediletas. Seus versos me assustavam. Nunca tinha lido versos de uma artista que se revelasse tanto, que valorizasse como ela essa inquietude tão inerente, a quem busca na palavra esta tradução e verbalização do ser. Sobre ela, escreveu Cristina Mutarelli "Sua linguagem resiste a ondas e fórmulas fáceis. Ana queria a palavra depurada, decantava as coisas e, sabia, como Manuel Bandeira que extrair o sublime do cotidiano não é tarefa das mais fáceis”;. Seus últimos versos refletem bem a angústia que vivia: "Estou muito compenetrada de meu pânico/ lá dentro tomando medidas preventivas”;.
Lembra de Baudelaire, Ana C. pediu licença e fez esse poema.


Flores do mais

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais.


Elisa Lucinda. Elisa Lucinda me ensinou, no palco, a gostar ainda mais de poesia, a parar de falar mal da rotina e fazer várias estréias de “;eu te amo”;. Se ler um poema de Elisa Lucinda já é uma experiência fantástica, o que dizer de ouvi-la interpretando seus poemas no palco. Recomendo para todos que gostam de poesia. E se não for possível, tente ouvi-la ainda que seja nos CDs que geralmente acompanham seus livros. Este aí é simplesmente belo:


Safena

Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.

Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões

Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate

O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.



Adélia Prado. Essa é hors-concours. Com ela descobri que a poesia não é feita só de encantamento, que a poesia pode e deve ser a meta do encontro entre leitor e poeta e que a riqueza maior da poesia está na simplicidade. Os textos de Adélia Prado são muito cuidados, mas claros e palpáveis. Como os deste poema:



Sedução

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.



Quando comecei a estudar inglês, descobri Elizabeth Barret Browning e me apaixonei pela história dela com o marido Robert Browning, o poeta inglês cujo talento só foi reconhecido postumamente. Com eles redescobri que a arte tinha valor superior, como expressão mais pura da emoção humana, e de que a tarefa do artista é unir o ideal ao real.

Depois veio Emily Dickinson. Essa calou fundo. Se de Cecília Meireles me lembro sempre do poema Retrato e mais precisamente do verso “;(...) Em que espelho ficou perdida a minha face? (...)”;, de Dickinson ficaram no inconsciente os versos “;That it will never come again/is what make life so sweet (Que nunca mais vira de novo/ é o que torna a vida tão doce).

Muitos e muitos poetas passaram pela minha vida todos esses anos. Dylan Thomas, Yates, W. H. Auden, e.c. cummings (em minúsculas mesmo), Afonso Romano de Santana, Marina Colasanti, o contemporâneo Arnaldo Antunes...

Por tudo que a poesia já me proporcionou é difícil acreditar que Poesia não vende, como afirma Rodrigo Capella em seu mais recente livro. Difícil acreditar propriamente não. Difícil de me conformar com esse fato. Eu mesma, sempre apaixonada por poesia, comprei poucos livros –; de Cecília Meireles, Drummond, Adélia, todos de Elisa Lucinda, Dylan Thomas, Emily Dickinson, Auden. A maioria dos livros de poemas que li –; e copiei em cadernos e mais cadernos –; o fiz nas bibliotecas.

Hoje percorro páginas e mais páginas da Internet para reler meus poetas prediletos, descubro lançamentos como o de Alguns Poemas –;Emily Dickinson, com tradução de José Lira. Na Internet posso ler versos como esse de Ms. Dickinson.



If I can stop one heart from breaking,

I shall not live in vain;

If I can ease one life the aching,

Or cool one pain,

Or help one fainting robin

Unto his nest again,

I shall not live in vain



É verdade que poesia não vende. Mas é verdade também a afirmação de Aurélio Buarque de Holanda, que define poesia em seu dicionário como “;aquilo que há de comovente nas pessoas ou nas coisas”;.

O jornalismo me levou a entrevistar vários poetas ao longo dos anos. E pelas conversas, pude perceber que a grande maioria escreve poesia porque ela oferece a possibilidade de ir além de si mesmo. Ela prescinde de personagens. Para nós, leitores é a pausa para suspirar. Quando autor e leitor se encontram no texto, trata-se do instante mágico em que compartilham o sonho. Precisa mais?

Dylan Thomas, o poeta que foi homenageado por Bob Dylan (na escolha do nome artístico de um certo Robert Allen Zimmerman) é o autor de um dos meus poemas prediletos de todo os tempos. Eu o vi e ouvi pela primeira vez no filme Do you remember love (Para Lembrar Um Grande Amor), que Jeff Bleckner fez para TV americana em 1985. O filme tem Joanne Woodward como uma professora e poeta que dá aulas de literatura inglesa na universidade e se descobre vítima de Alzheimer. E quando vence um prêmio literário, já em estágio avançado da doença, escolhe o poema de Dylan Thomas para expressar seus sentimentos.O poema foi escrito em homenagem a seu pai, velho e cego, no leito de morte.

Quem assistiu Quatro Casamentos e Um Funeral certamente se lembra do personagem de Simon Callow, ótimo e culto ator, lendo no enterro de seu namorado o poema Funeral Blues na medida certa de emoção: “;He was my North, my South, my East and West,/ My working week and my sunday rest”; (leia tradução abaixo). Auden, como o personagem de Callow, era gay, mas seu poema foi decorado por amantes de qualquer opção sexual desde então.

Também foi Auden que deu um depoimento importante sobre poesia em um poema em que diz:


“Pois a poesia nada faz acontecer; sobrevive

No vale de sua criação onde jamais executivos

Quereriam brincar, e corre para o sul

De ranchos de isolamento e atarefada águas,

Rudes cidades nas quais acreditamos

e morremos; sobrevive

um jeito de acontecer, um estuário.”

Um comentário:

  1. Sublime Tacilda...
    quem ama poesia conhece outra linguagem
    ainda desconhecida de quem a ignora

    Bjo

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