domingo, 29 de janeiro de 2012

A força social do cinema iraniano









“A Separação”, de Asghar Farhadi, e ”Isto Não é Um Filme”, de Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi, são destaques na mostra “O Amor, a Morte e as Paixões”


Qual o papel do cinema na atual sociedade iraniana? Como é possível o florescimento da arte cinematográfica num país islâmico com um governo altamente repressor comandado pelo ditador Mah­moud Ahmadinejad? Respos­tas para estas perguntas podem ser encontradas em “A Separação”, de Asghar Farhadi, “Isto Não é Um Filme”, de Mo­jtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi, representantes do cinema iraniano na mostra “O Amor, a Morte e as Paixões”, em cartaz no Cine Lumière Bou­gainville até o dia 9 de fevereiro.

Os filmes em questão são prova da efervescência política e cultural em andamento no Irã desde o fim da Guerra Irã-Iraque e a transição de governos. A sociedade iraniana, amordaçada por tantos anos, quer mostrar que seu país não pode ser reduzido a notícias de estereótipos divulgados pelas grandes redes de comunicação, tampouco moldada àquela imagem veiculada na propaganda política.

O universo iraniano é muito mais complexo e rico e o cinema, mais do que um produto cultural, é uma prática social, valioso tanto por si mesmo quanto pelo que pode revelar dos sistemas e processos culturais do país. Não se pode esquecer que artistas e intelectuais iranianos estão constantemente sob censura. Opositores são perseguidos e mortos e jornais reformistas são fechados. Todo o sistema de comunicação é controlado pelo governo e até mesmo a censura aos meios de comunicação é garantida pela constituição. O cinema torna-se assim uma importante ferramenta de expressão dos iranianos fora do país.

“A Separação”, de Asghar Farhadi, é o mais badalado da mostra “O Amor, a Morte e as Paixões”. O filme saiu do Festival de Berlim 2011 com o Urso de Ouro e o Urso de Prata para os quatro protagonistas (Leila Ha­tami, Sareh Bayat, Peyman Moadi e Shahab Hosseini). No início do ano recebeu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. Na terça-feira, 25, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e ao Oscar melhor roteiro original, além de ter sido a produção internacional preferida das associações de críticos de Nova York, Toronto e Chicago.

Todos os prêmios são justificáveis. Asghar Farhadi usa o tema do divórcio e as regras do rígido mundo islâmico como detonadores de tramas que possuem apelos irresistivelmente fascinantes e universais. Farhadi, que tem 39 anos e que já conhecemos por seu filme “Procurando Elly”, de 2009, (ganhador do Urso de Prata na categoria melhor diretor em Berlim), foi criticado pelas autoridades de seu país por mostrar o que acharam que eram as misérias do povo iraniano e não seus feitos notáveis. O diretor Farhadi, ao receber o Globo de Ouro, disse lacônico: “Meu povo é um povo que ama a paz”. Mas, fiel aos costumes muçulmanos, não apertou a mão de Madona que lhe entregou o prêmio.

Na primeira cena de “A Se­paração”, Simim (Leila Hatami) quer sair do Irã e, com isso, deixar para trás o ranço de uma sociedade que limita as liberdades da mulher. Nader (Peyman Moadi) até cogita a possibilidade de se mudar com a mulher e a filha para o exterior, mas não naquele momento. Ele tem de ficar no país para cuidar do pai que sofre de Alzheimer. Num gesto desesperado, ela pede a separação: quem sabe a ausência não faça o marido mudar de ideia? Eles estão diante do juiz e ela precisa que o marido autorize a viagem da filha. O divórcio se faz necessário porque no Irã uma mulher só pode viajar sozinha se for solteira. O marido aceita o divórcio, mas se recusa a permitir que filha viaje.

Na sequência seguinte, Simin faz as malas e volta a morar com sua família e Nader contrata Razieh (Sareh Bayat) para cuidar do velho doente. Sem nenhuma experiência como enfermeira, Razieh, que é uma muçulmana muito devota, tenta ajudar o marido desempregado (Shahab Hos­seini) nas despesas, mas não conta para ele que está trabalhando na casa de um homem recém-separado para cuidar de outro homem, mesmo que este seja um velho doente. Ultra devota, Razieh entra em conflito com suas tarefas cotidianas, que incluem trocar e banhar o patrão idoso. Outros problemas familiares afloram, como a necessidade de levar a filha para o serviço. Um descuido dela vai desencadear uma série de segredos, mentiras e mal-entendidos, que culminam em calorosas discussões na justiça. Assim, boa parte do filme se desenvolve em uma salinha improvisada dentro do fórum onde funciona um tribunal.

É aí que a trama se torna mais interessante. A estratégia de armação narrativa pela qual “A Se­paração” opera é uma fábula cinematográfica típica: há um acontecimento repentino e de causa indiscernível que fomentará e contraporá uma quantidade infinda de pontos-de-vista, versões e opiniões sobre não somente o possível culpado, mas todos os envolvidos. As histórias de Razieh e Nader esbarram num sistema judicial que evidencia a existência de um Estado autoritário, teocrático e machista, num contexto em que o poder de decisão dos personagens parece a cada momento escapar-lhe das mãos. Ao contarem as suas versões dos fatos que os levaram ao tribunal, os envolvidos lembram os personagens de “Rashomon”, filme do japonês Akira Kurosawa que ganhou o Leão de Ouro em 1951. Nele as impressões sobre um crime variavam ao sabor dos relatos de cada um dos implicados, inclusive com a versão do fantasma da vítima. A mesma volatilidade sobre a verdade emerge no drama iraniano. Aqui os conflitos se amontoam e embaralham cada vez mais, a partir do acontecimento que leva ao tribunal e sobre o qual ninguém parece ter certeza. Porém, nenhum deles está disposto a descer de sua altivez, baixar seu orgulho e deixar de lado o conflito cuja razão-de-ser passa a importar menos do que como resolver o impasse.

No ringue jurídico, cada round resulta em uma discussão meticulosa sobre a elaboração da verdade. E ao espectador cabe acompanhar as oscilações das próprias emoções ao sabor do que cada um sabe e diz. E “A Separação” em si se transforma em uma trama metafórica que retrata uma microssituação que remete ao universo macro dos conflitos da cultura islâmica e mais precisamente do Irã, onde obstinação e o orgulho, travestidos de honra cultural ou religiosidade, estão acima de tudo, e onde a resolução pacífica parece um tanto quanto distante. O emaranhado de problemas só crescerá exponencialmente a cada tentativa de solucioná-lo. Vale destacar como o diretor encaminha a história e cria diversas tramas e subtramas a partir de um detalhe que parece absolutamente simples para nós, ocidentais: uma separação. O filme que começa de cara com a questão da separação, vai além do entendimento afetivo do casal, e de repente se amplia. Logo se converte num painel que parte do privado para o público, sem, no entanto perder o foco da separação. Tudo que acontece tem como ponto de partida as dificuldades de entendimento que leva a decisão de um divórcio. As questões subjacentes dão densidade a tudo que se vê em uma separação: e a verdade? E a ética? E a mentira? E a fidelidade? E o pecado? E a abnegação? Os testemunhos e os falsos testemunhos? O papel dos vizinhos? E não é a falta de diálogo que leva à separação?

A opção por filmar a maior parte da produção com uma câmara na mão é um trunfo do cinema de Asghar Farhadi. A câmara trêmula adquire uma única conotação, um único sentido e função — que se tornaram um tanto quanto predominantes no cinema contemporâneo: aproximar-se do drama de personagens condenados, para melhor enxergarmos suas dores e suas lágrimas. Numa discussão fervorosa entre dois personagens, o diretor prefere dar ênfase ao rosto de um terceiro que lhes observa, passivo e açoitado. Este rosto pede que a briga cesse, que o orgulho cesse. É assim que Asghar Farhadi ajuda o público ocidental a lidar com a diferença de valores islâmicos, uma cultura em que para o homem é mais importante que sua mulher não tenha contato com outro homem do que ser agredida.

Se tivesse focado seu filme na questão pura e simples da separação de um casal esclarecido e bem formado na sociedade iraniana de hoje, cerceada e censurada pelo autoritário Mahmoud Ahma­dinejad, Asghar Farhadi já teria feito um filme e tanto. Mas o cineasta extrapola as diferenças culturais, sociais e econômicas e expõe a alma humana na sua fragilidade mais íntima de forma intensa e perturbadora. Im­pos­sível não se emocionar na se­quência final em que o diretor recoloca o espectador diante do mesmo problema do plano inicial: “um casal se separou — com quem fica a filha”? Espan­to­samente perfeito, com o diretor dividindo esteticamente num plano, duas posições, dois afetos, duas difíceis escolhas.

Isto é um grande filme de guerrilha



“Isto Não é Um Filme” retrata o cotidiano solitário e claustrofóbico do diretor de "O Balão Branco”, "O Círculo" e "Ouro Carmim"

No Festival de Cannes deste ano, quando a atriz Juliette Binoche dava entrevista coletiva para falar do filme “Cópia Fiel”, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, ela caiu em prantos. Emocionou-se ao fazer um apelo internacional pela libertação dos cineastas iranianos perseguidos, mais especificamente por Jafar Panahi. Preso em dezembro de 2010 sob acusação de estar envolvido em atividades que atentam contra a segurança nacional e de fazer propaganda contra a Revolução Islâmica, mobilizou em sua defesa diversas comunidades ocidentais, incluindo os festivais de Cannes, Berlim, Locarno, Rot­terdam e Kar­lovy Vary; associações internacionais de cinema e até ci­neastas de Holywood, como Martin Scorsese, Steven Spiel­berg e Francis Ford Cop­pola. Ainda assim, foi libertado somente depois de uma semana de greve de fome e o pagamento de fi­ança, passando a cumprir prisão domiciliar enquanto aguardava uma apelação do recurso à sua sentença.

Festejado ou premiado nos principais festivais internacionais, Jafar Panahi, o realizador de “O Balão Branco”, “O Círculo” e “Ouro Carmim”, não cumpriu a pena imposta pelo governo de Mahmoud Ahmadinejad. Assim, entre a proibição do governo e a vontade do diretor de expressar suas opiniões, ele resolveu fazer esse não filme batizado de “Isto Não é Um Filme”, espécie de interpretação corajosa de seu veredito: mesmo se o diretor não pode filmar nem escrever roteiros, nada o impede de ser filmado por um amigo, e de ler o seu próprio roteiro já escrito.

O ponto de partida da realização é explicado pelo cineasta ao contar uma piada em “Isto Não é Um Filme”. “O que fazem as cabeleireiras quando não trabalham? Cortam os cabelos umas das outras”, diz o cineasta. Assim, o que faz um cineasta quando é proibido de filmar? Filma outro cineasta. Assim “Isto Não é Um Filme” foi realizado com a cumplicidade indispensável de um colega e compatriota, o codiretor Mojtaba Mirtahmasb, também preso e acusado de “espionagem” no Irã.

Assim “Isto Não é Um Filme” é assinado pelo amigo e colega de profissão de Panahi, Mojtaba Mirtahmasb. O nome do filme remete ao famoso quadro “Isto Não é um Cachimbo”, em que o pintor surrealista belga René Magritte expõe a imagem de um cachimbo ao mesmo tempo em que insere um texto sob o objeto afirmando não se tratar de um cachimbo. Assim como Magritte, que provoca o observador indicando que a obra não contém o objeto em si e somente uma representação do objeto, a obra de Panahi foi concebida para representar um filme que não existe, já que, calado pela censura, não pôde de fato fazê-lo.

O documentário foi enviado ao Festival de Cannes gravado em um pen drive, dentro de um bolo, onde foi exibido pela primeira vez. Depois disso, foi mostrado em importantes festivais do mundo, dando força ao protesto internacional contra esse tipo de repressão. Quando o filme foi exibido em Cannes, Panahi se encontrava em prisão domiciliar, aguardando novo apelo às autoridades iranianas.






No filme vemos um dia na vida do cineasta, ao telefone, encenando as filmagens de um novo trabalho. É tocante sua aflição. Se não pode sair de casa, recebe visitas. Parece uma vida confortável, mas não é. Uma câmera de vídeo digital flagra-o tomando café da manhã, conversando com a advogada, alimentando sua iguana de estimação, revendo suas obras. Com uma fita crepe, ele delimita os espaços do cenário num tapete e narra sua próxima história: a da moça prestes a entrar na faculdade que fica trancafiada em casa pelos pais fundamentalistas. Para dar uma ideia da imagem e dos planos que gostaria de fazer, Panahi mostra referências de outros filmes, em DVD, mas de vez em quando ele não consegue continuar sua encenação, se levanta e vai chorar fora do alcance da câmera. “Isto Não é Um Filme” é memorável não apenas por seu engajamento político (o “fazer arte a qualquer preço”), mas acima de tudo pela exposição sem concessões que Panahi faz de sua intimidade, de sua tristeza, de sua vontade frustrada de trabalhar com o que gosta. O projeto é um reflexo da frustração deste homem, que passa seus dias pensando em como filmar, e que decide se aventurar nesta espécie de terapia rudimentar, destinada a apaziguar seus desejos de cinema. Próximo ao desfecho, um rapaz aparece para pegar o lixo e, numa conversa de elevador, esse estudante de arte revela seus dissabores com o regime de Ahmadinejad. Mero acaso ou uma encenação planejada? Pouco importa.

O que o filme não narra são os fatos ocorridos após a produção de “Isto Não é Um Filme”. A despeito de todos os protestos internacionais, Jafar Panahi foi condenado publicamente a seis anos de prisão e 20 anos sem filmar, escrever roteiros, dar entrevistas ou sair do país. As notícias sobre o diretor de cinema cessaram desde então. Enquanto Jafar Panahi está preso, outros diretores também sofrem com a ditadura islâmica, como Mohsen Makhmalbaf (de “A Caminho de Kandahar”), que vive no exílio com a família e o próprio Mojtaba Mirtahmasb (codiretor deste documentário), que teve seu passaporte confiscado e impedido de divulgar “Isto Não é Um Filme” no exterior.