terça-feira, 15 de novembro de 2011

A grandiosidade de Peter Gabriel







Sucesso no festival SWU, o ex-vocalista do Genesis injeta ““New Blood”” (sangue novo) em suas músicas, dispensando guitarra, baixo ou bateria



A primeira vez que ouvi Peter Gabriel foi em uma sala escura de cinema. Era 1990 e eu estava assistindo “A Última Tentação de Cristo”, que Martin Scorsese havia realizado no ano anterior. O filme de Martin Scorsese foi claramente a obra cinematográfica mais controversa da década de 80. Para realizá-la, o diretor baseou-se no polêmico livro do homônimo, do grego Nikos Kazantzakis, publicado em 1953, no qual a vida de Jesus Cristo era descrita de forma bem diferente da habitual, sujeita a diversas tentações como medo, dúvida e até mesmo luxúria. Controvérsias à parte, a produção conseguiu gerar uma unanimidade avassaladora em torno da sua trilha sonora original, um dos mais decisivos marcos da “World Music”, que até então se havia mantido quase inexplorada. E Peter Gabriel, o ex-vocalista do Genesis, um dos mais importantes e vanguardistas artistas da cena musical mundial nos anos 80, foi o homem responsável por este feito.
Convidado por Scorsese para fazer a trilha sonora de “A Última Tentação de Cristo”, Peter Gabriel resolveu dar um passo além. Em vez da simples música de fundo, concebeu um álbum com vida própria, mas respeitando a estética do filme. Gabriel ignorou a fórmula de orquestrações típicas das produções bíblicas e foi atrás do tipo de música que se fazia e ouvia na época em que a ação supostamente teria se passado. Também recrutou músicos turcos, armênios, africanos e árabes, além de buscar tesouros gravados pela Unesco. Sintetizadores e guitarras dão um toque dissonante, mas ao mesmo tempo familiar. O álbum pode ser resumido em uma única palavra: grandioso. Uma grandiosidade que valeu a Gabriel o Grammy de melhor disco de World Music.
A grandiosidade continuou sendo companheira de Peter Gabriel ao longo dos anos, desde quando ele fez o impecável “Us” (1992) até "Scratch my back", álbum lançado ano passado em que interpretava composições de outros artistas. Assim não foi surpresa ver a mesma grandiosidade no show que Peter Gabriel fez no festival de música SWU, apresentado pela TV na noite de domingo. No show, ele, simpaticamente, leu e só falou em português. E provou que o “New Blood” (Sangue Novo), título de seu último disco, está mesmo circulando em suas veias. A ousadia de se apresentar ao ar livre com uma orquestra por si só já mostrava a grandeza que ele queria alcançar. E conseguiu. O show, a exemplo do disco “New Blood”, reuniu canções que dispensavam elementos tradicionais do rock como guitarra e bateria. Com novos arranjos e ideias, as letras ficam ainda mais expostas e reveladoras do quão bom compositor é o ex-integrante do Genesis. O resultado é uma versão grandiosa, embora curta, sob acordes de violinos, violoncelos e afins, do que já era de dimensão inalcançável, a voz de Peter Gabriel. Ouvindo-a, ninguém imagina que quem está cantando é um senhor de 61 anos. Um dos grandes momentos foi a interpretação da música “Biko”, que o artista fez para a trilha sonora de “Um Grito de Liberdade”, realizado por Richard Attenborough em 1987 sobre o ativista pelos direitos dos negros na África do Sul, Steve Biko.
Vendo-o na TV, só sentia vontade de poder vê-lo ao vivo. Mas me contentei em alegrar minha manhã de segunda-feira ouvindo o disco “New Blood”, a trilha sonora de “A Última Tentação de Cristo”e para completar a overdose de Peter Gabriel revi o DVD de “Us”, que mostra os bastidores das gravações dos clips do CD do mesmo nome. Exagero. Sou meio tendente a explorar as coisas que gosto à exaustão (mentira... nunca me canso de ver e ouvir o que é bom).
Ouvir “New Blood” é sempre um prazer. O disco se apresenta como continuação à ideia de "Scratch my back" ao reinterpretar canções de maneira orquestral. Só que agora essas músicas são do próprio Peter Gabriel. “New Blood” traz arranjos reimaginados de muitas canções de Peter, que dispensam as armas tradicionais do arsenal do rock – sem guitarra, baixo ou bateria –, as letras são expostas e descobertas, muitas vezes tomando um novo significado com o passar dos anos. O álbum é aberto com "Downside Up", que Gabriel canta com a filha Melanie. Outra participação feminina é Anne Brun na música “Don’t Give Up”, (veja em http://www.youtube.com/watch?v=vLPlIxV7BrE). Gabriel já cantou a música nos palcos da vida com artistas como Tracy Chapman, Sinnead O’Connor e Kate Bush. Outro grande momento do disco é a faixa bônus Solsbury Hill (introduzida por “A Quiet Moment”, cinco minutos de som ambiente gravado pelo engenheiro, Dickie Chappell, antigo companheiro de Gabriel em outros trabalhos). O disco tem ainda "Digging In The Dirt", "Intruder", "Mercy Street", "The Rhythm of the Heat" e a atmosférica "San Jacinto”. Aliás, as que melhor receberam retoques são "San Jacinto", "Wallflower", "In Your Eyes" e "Red Rain".
Em tempo. O disco não tem uma versão orquestral de “Biko” cantada no SWU. Não faz falta. Mas faz falta uma regravação de “Come Talk To Me”, do disco “Us”. A música, que curiosamente relatava seus problemas com a filha Anna – que o culpava pelo divórcio dos pais - e tinha vocal de apoio por Sinéad O'Connor, atualmente é cantada por pai e filha nos show de Peter Gabriel.










Almodóvar se reinventa sem perder a essência




A força e a emoção sempre vistas nas obras do cineasta espanhol estão exatamente na coragem de escondê-las em “A Pele Que Habito”

Que Almodóvar é um dos cineastas mais criativos e renomados de sua época ninguém duvida e mesmo quando ele faz um filme fraco como “Abraços Partidos”, ainda fica acima da média das produções contemporâneas. “A Pele Que Habito”, a mais recente produção que leva a assinatura do cineasta espanhol é especial. Não somente por marcar a estreia de Almodóvar no gênero suspense, mas principalmente por provar que ele pode ser mais que drogas, travestis, cores fortes e mulheres sempre à beira de um ataque de nervos. “A Pele Que Habito” demonstra que Almodóvar pode mudar de gênero e inovar sua identidade, se reinventar, sem, contudo, perder sua essência.

No começo os admiradores do diretor podem até estranhar, mas com o desenrolar da trama vão perceber que estão diante do Almodóvar de sempre. As referências cinematográficas estão na produção. Almodóvar assumidamente usou influências de Alfred Hitchcock, Dario Argento, Luis Buñel e do horror “Os Olhos Sem Rosto” (1960), do francês Georges Franju e mesmo James Whale e sua produção, “A Noiva de Frankenstein” (no personagem de Robert, há uma paixão necrófila, muito parecida com o protagonista do romance de Mary Shelley). Embora o próprio cineasta tenha afirmado que “A Pele Que Habito” é sua primeira incursão pelo gênero suspense, há certa dificuldade de definir a produção em qualquer gênero pré-existente: terror, suspense, drama, romance. Na verdade o filme tem um pouco de tudo e tudo bem misturado.

Baseado no romance “Tarântula”, de Thierry Jonquet, “A Pele Que Habito” tem uma daquelas tramas sobre as quais não se deve falar em detalhes, sob o risco de estragar a experiência do espectador que gosta de ser surpreendido. Qualquer deslize pode resultar num spoiler. A produção se divide em duas tramas paralelas que aparentemente não tem ligação. Mas tudo se centra em Roberto Ledgard, o cirurgião plástico vivido por Antonio Banderas, que acaba de criar uma pele artificial. Suas pesquisas se tornaram perigosas no quesito da ética devido aos traumas em seu passado. Ledgard perdeu a mulher e a filha, a primeira em consequência de um acidente de carro, a segunda por traumas que se iniciaram com a morte da mãe e culminaram em uma tentativa de estupro. É inegável que Roberto é um homem perturbado e esconde mais segredos do que demonstra, sendo sempre amparado por sua governanta Marília, vivida por Marisa Paredes.

A verdade é que o roteiro, escrito pelo próprio Almodóvar, baseado no livro de Jonquet, começa de forma confusa. Não parece ter um objetivo exato, vai soltando informações na tela e cabe ao cinéfilo ir costurando estas informações para compreender o caminho, da mesma forma que o cirurgião vai costurando a pele de sua cobaia humana a que ele chama de Vera. Tudo é proposital e fará sentido no final, principalmente para quem presta atenção nas pistas deixadas pelo cineasta.

Para explicar a confusão ao espectador o diretor utiliza o velho recurso de flashbacks, recheados de pistas e mensagens subliminares que são interessantes de serem observadas. Quando os flashbacks começam, todo o enredo leva o espectador a uma viagem de abuso sexual sadomasoquista em vários níveis, desde o físico ao sociopata, passando pelo psicológico. As violações almodovarianas nunca são comuns. Almodóvar volta a trabalhar com suas obsessões, seu voyeurismo, sua identidade bifurcada, a ambiguidade sexual e as falhas do passado. E por que não dizer? Com seu humor e o kitsch que lhe são tão caros. De que outra forma explicar o bandido fantasiado de tigre e com sotaque brasileiro?

O bandido fantasiado de tigre é a essência da estética kitsch almodovariana em “A Pele Que Habito”. O cineasta troca os cenários exuberantes e coloridos por ambientes dotados de certa frieza austera que, segundo ele, contrasta com a atmosfera e narrativa absurda que permeia todo o longa. Até mesmo o figurino de Vera, assinado por Jean Paul Gaultier – que também já ficou responsável por criar as roupas de outros filmes do diretor, como “Kika” e ”Má Educação” –, vem mais discreto, mas não menos expressivo: apenas uma segunda-pele bege, tipo macacão, bem ajustada ao corpo, que parece sufocar e esconder o que há por debaixo da superfície. E as cores de Almodóvar, alvo de estudos acadêmicos, são substituídas pelo tom azul que permeia todo o filme. Ele aparece em todas as suas formas e tons. Se o vermelho exprime paixão, fogo e é uma cor quente, como nos longas do diretor, o azul traz frieza, tristeza, o blue que os americanos chamam de melancolia.

E o elenco segue o tom frio da história. As interpretações são contidas, sem emoções exacerbadas, ou paixões avassaladoras. Sem trabalhar com Almodóvar desde “Ata-Me” (1990), Antonio Banderas reencontra o diretor que o colocou em evidência no mundo do cinema e encara um personagem que foge – e muito – dos papéis aos quais foi reduzido por Hollywood. O reencontro de Almodóvar com Antonio Banderas resultou no melhor desempenho do ator desde que abandonou a Espanha e se estabeleceu em Hollywood. A dor e desespero escondidos dentro de sua personalidade impassível são de admirar. Difícil não sentir pena do médico e mesmo não se identificar com sua dor. Não é bom que um cineasta confronte-nos com o nosso lado mais sombrio quando percebemos que sentimos simpatia pelo vilão? Banderas amadureceu.

Por outro lado, a grande Elena Anaya (de “Fale com Ela”) confirma que é uma das grandes atrizes de sua época. Seu minimalismo expressivo, a maneira que Almodóvar explora o seu olhar, seus olhos, é admirável. Além de sua beleza física, há que se destacar a forma com que ela usa o corpo no papel. A personagem Vera é a mais difícil de toda a história em suas nuanças de estranhamento de uma cobaia humana que a gente não sabe exatamente de onde vem, nem para onde vai. Depois de conhecermos sua história admiramos ainda mais a interpretação. Marisa Paredes dispensaria comentários. Com sua naturalidade absoluta, ela dá à Marília um destaque que na pele de outra atriz teria passado despercebido. Menos diva e mais mulher.

Uma recomendação a quem for ver o filme: vá ao cinema de mente aberta.