A Vida Gritando nos
Cantos reúne um apanhado de crônicas
publicadas nos anos 80 e 90, com o autor
falando sobre política e cultura, relacionamentos , AIDS, com pintadas de humor,
nostalgia e sarcasmo.

Deixa ei descer do mundo, que tá duro demais. Ou pelo menos descer do Brasil, que, se o mundo está duro assim, este país então está insuportável... Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se posso chamar “Brasil”. Vossas excelências sabem o que está acontecendo nesta terra. Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? Estou cobrando meus direitos; porque não está dando nem para comer, nem para vestir, nem para morar, e muito menos para sonhar. Aí fica mais grave, porque os senhores não têm o direito de matar sonhos. E não venham nos pedir mais paciência. Estamos muito machucados, explorados e enganados para ter essa coisa mansa chamada paciência...”
Não. Este texto não está nas
redes sociais e nem tampouco é assinado por um dos milhares de manifestantes do
movimento Vem Pra Rua. Este texto
integra o livro A Vida Gritando nos Cantos, uma compilação de crônicas escritas
por Caio Fernando Abreu entre 1986 e 1996 – ano de sua morte - e publicadas
juntas pela primeira vez em forma de livro pela editora Nova Fronteira no
segundo semestre de 2012 e que comprei
na semana passada, movida por um impulso nostálgico, que me fez ter
vontade reviver os anos de faculdade e
mesmo os meus tempos de redação de jornal, quando resenhava seus livros.
As crônicas que compõem esta
antologia foram garimpadas no periódico paulista pelas pesquisadoras Liana
Farias e Lara Souto Santana. O texto acima, Um Prato de Lentilha, representa
maravilhosamente bem não somente esse nosso momento de protesto, mas o que a
gente vem vivendo há tanto tempo neste Brasil que chega a entristecer. A
crônica foi publicada em O Estado de São Paulo no dia 18 de fevereiro de 1987 e
não poderia ser mais atual. O título se
refere a um texto de Brecht que dizia: “ Trazei primeiro um prato de lentilhas/
porque moral, somente depois de comer”.
109 crônicas depois - Isso
mesmo, eu contei – dá pare entender porque Caio Fernando Abreu é considerado
por muitos um dos autores de maior expressão das décadas de 1970 a 1990. E não
é para menos. Embora ele próprio tenha exclamado, em carta ao amigo José Márcio
Penido, “Meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração”, o
que escreveu não é absolutamente datado. Seus contos, crônicas, romances,
poemas e peças de teatro transitam por temas altamente atuais, ao mesmo tempo
em que abordam questões universais, atemporais. Não é à toa que a cada dia vêm
ganhando novos fãs, das mais variadas idades, seduzidos por suas ideias e
ideais.
O livro é lindo de doer –
para usar uma expressão da geração do próprio Caio Fernando – e, por ser
organizado de forma temporal, o leitor pode acompanhar a literatura confessional
de Caio semana a semana. Está tudo lá: somos testemunhas de seu amadurecimento
como artista e pessoa. O que ele gostava de ver, de ouvir, de ler. Os assuntos são os mais diversos possíveis: o
cotidiano paulistano, os trabalhos jornalísticos, os amigos loucos, as noites
no Madame Satã, a solidão... tudo regado à MPB – nem a velha nem a nova, apenas
MPB. São textos que cobrem no máximo duas páginas, que podem ser absorvidos sem
dificuldades, cheio de referências.
