terça-feira, 15 de novembro de 2011

Almodóvar se reinventa sem perder a essência




A força e a emoção sempre vistas nas obras do cineasta espanhol estão exatamente na coragem de escondê-las em “A Pele Que Habito”

Que Almodóvar é um dos cineastas mais criativos e renomados de sua época ninguém duvida e mesmo quando ele faz um filme fraco como “Abraços Partidos”, ainda fica acima da média das produções contemporâneas. “A Pele Que Habito”, a mais recente produção que leva a assinatura do cineasta espanhol é especial. Não somente por marcar a estreia de Almodóvar no gênero suspense, mas principalmente por provar que ele pode ser mais que drogas, travestis, cores fortes e mulheres sempre à beira de um ataque de nervos. “A Pele Que Habito” demonstra que Almodóvar pode mudar de gênero e inovar sua identidade, se reinventar, sem, contudo, perder sua essência.

No começo os admiradores do diretor podem até estranhar, mas com o desenrolar da trama vão perceber que estão diante do Almodóvar de sempre. As referências cinematográficas estão na produção. Almodóvar assumidamente usou influências de Alfred Hitchcock, Dario Argento, Luis Buñel e do horror “Os Olhos Sem Rosto” (1960), do francês Georges Franju e mesmo James Whale e sua produção, “A Noiva de Frankenstein” (no personagem de Robert, há uma paixão necrófila, muito parecida com o protagonista do romance de Mary Shelley). Embora o próprio cineasta tenha afirmado que “A Pele Que Habito” é sua primeira incursão pelo gênero suspense, há certa dificuldade de definir a produção em qualquer gênero pré-existente: terror, suspense, drama, romance. Na verdade o filme tem um pouco de tudo e tudo bem misturado.

Baseado no romance “Tarântula”, de Thierry Jonquet, “A Pele Que Habito” tem uma daquelas tramas sobre as quais não se deve falar em detalhes, sob o risco de estragar a experiência do espectador que gosta de ser surpreendido. Qualquer deslize pode resultar num spoiler. A produção se divide em duas tramas paralelas que aparentemente não tem ligação. Mas tudo se centra em Roberto Ledgard, o cirurgião plástico vivido por Antonio Banderas, que acaba de criar uma pele artificial. Suas pesquisas se tornaram perigosas no quesito da ética devido aos traumas em seu passado. Ledgard perdeu a mulher e a filha, a primeira em consequência de um acidente de carro, a segunda por traumas que se iniciaram com a morte da mãe e culminaram em uma tentativa de estupro. É inegável que Roberto é um homem perturbado e esconde mais segredos do que demonstra, sendo sempre amparado por sua governanta Marília, vivida por Marisa Paredes.

A verdade é que o roteiro, escrito pelo próprio Almodóvar, baseado no livro de Jonquet, começa de forma confusa. Não parece ter um objetivo exato, vai soltando informações na tela e cabe ao cinéfilo ir costurando estas informações para compreender o caminho, da mesma forma que o cirurgião vai costurando a pele de sua cobaia humana a que ele chama de Vera. Tudo é proposital e fará sentido no final, principalmente para quem presta atenção nas pistas deixadas pelo cineasta.

Para explicar a confusão ao espectador o diretor utiliza o velho recurso de flashbacks, recheados de pistas e mensagens subliminares que são interessantes de serem observadas. Quando os flashbacks começam, todo o enredo leva o espectador a uma viagem de abuso sexual sadomasoquista em vários níveis, desde o físico ao sociopata, passando pelo psicológico. As violações almodovarianas nunca são comuns. Almodóvar volta a trabalhar com suas obsessões, seu voyeurismo, sua identidade bifurcada, a ambiguidade sexual e as falhas do passado. E por que não dizer? Com seu humor e o kitsch que lhe são tão caros. De que outra forma explicar o bandido fantasiado de tigre e com sotaque brasileiro?

O bandido fantasiado de tigre é a essência da estética kitsch almodovariana em “A Pele Que Habito”. O cineasta troca os cenários exuberantes e coloridos por ambientes dotados de certa frieza austera que, segundo ele, contrasta com a atmosfera e narrativa absurda que permeia todo o longa. Até mesmo o figurino de Vera, assinado por Jean Paul Gaultier – que também já ficou responsável por criar as roupas de outros filmes do diretor, como “Kika” e ”Má Educação” –, vem mais discreto, mas não menos expressivo: apenas uma segunda-pele bege, tipo macacão, bem ajustada ao corpo, que parece sufocar e esconder o que há por debaixo da superfície. E as cores de Almodóvar, alvo de estudos acadêmicos, são substituídas pelo tom azul que permeia todo o filme. Ele aparece em todas as suas formas e tons. Se o vermelho exprime paixão, fogo e é uma cor quente, como nos longas do diretor, o azul traz frieza, tristeza, o blue que os americanos chamam de melancolia.

E o elenco segue o tom frio da história. As interpretações são contidas, sem emoções exacerbadas, ou paixões avassaladoras. Sem trabalhar com Almodóvar desde “Ata-Me” (1990), Antonio Banderas reencontra o diretor que o colocou em evidência no mundo do cinema e encara um personagem que foge – e muito – dos papéis aos quais foi reduzido por Hollywood. O reencontro de Almodóvar com Antonio Banderas resultou no melhor desempenho do ator desde que abandonou a Espanha e se estabeleceu em Hollywood. A dor e desespero escondidos dentro de sua personalidade impassível são de admirar. Difícil não sentir pena do médico e mesmo não se identificar com sua dor. Não é bom que um cineasta confronte-nos com o nosso lado mais sombrio quando percebemos que sentimos simpatia pelo vilão? Banderas amadureceu.

Por outro lado, a grande Elena Anaya (de “Fale com Ela”) confirma que é uma das grandes atrizes de sua época. Seu minimalismo expressivo, a maneira que Almodóvar explora o seu olhar, seus olhos, é admirável. Além de sua beleza física, há que se destacar a forma com que ela usa o corpo no papel. A personagem Vera é a mais difícil de toda a história em suas nuanças de estranhamento de uma cobaia humana que a gente não sabe exatamente de onde vem, nem para onde vai. Depois de conhecermos sua história admiramos ainda mais a interpretação. Marisa Paredes dispensaria comentários. Com sua naturalidade absoluta, ela dá à Marília um destaque que na pele de outra atriz teria passado despercebido. Menos diva e mais mulher.

Uma recomendação a quem for ver o filme: vá ao cinema de mente aberta.

2 comentários:

  1. Olá Tacilda, como você sabe já vi quase todos os filmes de Almodóvar, com exceção de "Pepi, Luci, Bom e outras garotas do quarteirão" que não consigo encontrar. Preciso ver A pele que habito logo. Abraços e saudades.

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