quinta-feira, 14 de julho de 2011

A época de ouro do cinema de Woody Allen




Confesso que relutei em ir assistir Meia noite em Paris, de Woody Allen. Será que valeria a pena rever mais um alter ego do cineasta inseguro, tímido, infeliz com suas escolhas pessoais e de trabalho, cheio de trejeitos e com aquele jeito “cuida de mim” que várias mulheres gostam? Fui. E me deliciei mais uma vez com a certeza de que não existe nada melhor do que uma história bem contada, mesmo quando a gente já a conhece.

Para começar, a produção se vale de um clichê da ficção científica – a viagem no tempo – que Allen usa para reverenciar o romantismo e a pulsão cultural da Paris dos anos 20. Inteligente, leve, encantador, delicioso de se assistir, o filme ainda mostra a capacidade do cineasta de mergulhar na nostalgia para tirar o positivo do presente.

No papel recorrente do próprio Allen, como seu alter ego, agora está Owen Wilson. Ele vive Gil, roteirista de Hollywood que visita Paris com a noiva, Inez (Rachel McAdams), e os sogros. Escritor frustrado preso a um trabalho que considera medíocre, Gil, a exemplo de outros intelectuais americanos, sonha com a Paris dos anos 20, quando a capital francesa era o paraíso de “todos” os artistas. E vê a Cidade Luz como o lugar ideal para sua criatividade desabrochar. Isso acontece quando ele é transportado para os anos 20 por um portal de contos de fadas; o badalar dos sinos de Notre Dame a meia noite. Ele acabara de passar por uma sessão de degustação de vinho, está meio bêbado e acha normal pegar carona em um carro antigo, que literalmente o leva a uma viagem no tempo.

Como a gente conhece as neuroses de Allen e sua maestria, os delírios do protagonista parecem perfeitamente naturais. Ele circula com desenvoltura entre dois núcleos, o real do século 21 e o fantástico dos fervidos anos 20. Em suas escapadas pelas noites de Paris ele é levado ao encontro de figuras como Cole Porter, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Pablo Picasso e T.S. Eliot, entre outros tantos nomes que ajudaram a escrever a história do século 20 na música, na literatura, nas artes plásticas e no cinema.

Nos anos 20 Gil não somente tem a chance de interagir com a escritora americana Gertrude Stein como o privilégio de tê-la avaliando seu trabalho, recebendo conselhos tão bons quanto os que Stein dava ao jovem Picasso, que, segundo ela, era bom, mas não tão bom quanto Matisse e estava longe de um Miró (nas palavras de Hemingway). Com Ernest Hemingway ele toma absinto e ouve os célebres e impulsivos discursos sobre a inveja que os escritores têm um dos outros. Quando Gil entrega o manuscrito de seu livro para Hemingway, pedindo para que este o leia, o autor de Adeus às Armas responde de forma hilária e genial: “Não vou ler. Se for ruim, vou detestar. Se for bom, vou ficar com inveja e detestarei ainda mais”.

É na casa de Stein que ele conhece uma bela francesa por quem se apaixona: Adriana (Marion Cottilard, Oscar de melhor atriz pelo filme Piaf), seguidora da estilista Coco Chanel e amante de Pablo Picasso, depois de passar pelas mãos de Braque e Modigliani. Como Gil, Adriana acha que nasceu na época errada e nutre obsessão pela Belle Époque, que considera a verdadeira era de ouro de Paris.

Outro grande momento do filme é a divertida conversa de Gil com o fotógrafo Man Ray, o cineasta Luis Buñuel e o pintor Salvador Dalí, figuras conhecidas do surrealismo. Aliás, a cena mais memorável de Meia noite em Paris fica por conta do encontro de Gil com Luis Buñuel em uma festa. Gil sugere que rode um filme sobre um grupo de burgueses que, após o jantar, não consegue abandonar a mansão e, aos poucos, vão perdendo o verniz de civilidade. O coitado só entenderia o conselho de Gil em 1962, quando usou o argumento para filmar o hoje clássico O Anjo Exterminador.

Acostumado a fazer filmes curtos, Allen acaba prejudicando Meia noite em Paris ao usar os personagens célebres dos anos 20 – T. S. Elliot, Cole Porter e mesmo Scott e Zelda Frtizgerard – como meros coadjuvantes. Na maioria das vezes eles entram em cena apenas para ilustrar uma piada rápida de Allen - como quando ele oferece um valium para uma Zelda Scott prestes a cometer suicídio. Allen explora mais a fundo a relação de Gil com Hemingway e Gertrude Stein. Nas conversas dos dois escritores fica a constatação de como a humanidade foi transformada pelo século 20: do falastrão, resolvido e confiante Ernest - na verdade, um beberrão- ao inseguro, frágil e problemático Gil. Hemingway, um ex-combatente de guerra, não entende por que Gil cultiva um constante medo da morte. Ou por que simplesmente não se autodenomina “o melhor escritor do mundo”, ao invés de ter vergonha até mesmo de mostrar seu livro para os outros. E de Stein recebe conselhos que vão nortear sua vida em 2010.

Depois, passeando pelo passado, de braços dados com Adriana Gil tem um insight. Todo mundo acha sua época ruim. Gil sonha com os anos 20, Adriana com a Belle Époque e Paul Gauguin queria ter vivido na era renascentista. Não seria melhor viver o presente? Que tal exaltar o passado, mas sem desqualificar o presente? Por que viver um passado que nunca se teve e esquecer o presente que está passando por nós? Allen mostra ao espectador, de forma carinhosa, as pequenas incoerências do ser humano, que não encontra a felicidade aqui, mas também não encontra lá. É preciso, sugere Allen, para que isso aconteça, dar-se conta de que passado e presente não são, necessariamente, excludentes. O passado nunca vai embora de todo. E no filme isso acontece com a personagem da vendedora de antiguidades com quem Paul finalmente descobre o encanto de caminhar pelas ruas de Paris sob a chuva. Com ela, Gil certamente poderá concluir que todas as épocas são de ouro em Paris.

Saí da sala de cinema com enorme vontade de rever The Moderns, de Alan Rudolph, e de reler Autobiografia de Alice B. Toklas, que curiosamente foi escrita não por Toklas, mas por sua companheira Gertrude Stein. Felizmente tenho os dois. O filme de Rudolph em uma antiga e ainda funcional fita em VHS (não, não me desfiz do antigo videocassete em plena era do blue ray) e o livro em uma edição de bolso lançada pela L&PM Pocket.

O livro Gertrude Stein é um dos mais preciosos documentos sobre os criadores da arte e da literatura moderna. Os elogios não são poucos frente ao cenário grandioso da obra – a Paris do início do século 20 – e à sala de visitas de Gertrude Stein, o lendário número 27 da Rue de Fleurus, onde reunia amigos como Picasso, Matisse, Hemingway, Jean Cocteau e Scott Fitzgerald, todos ainda jovens e desconhecidos, em informais encontros e frequentes festas. Seus convidados podiam também admirar uma das maiores coleções de arte do século passado, que incluía o retrato da anfitriã pintado por Picasso. Aliás, o retrato aparece na sala de Stein no filme de Allen.

Já o filme que Alan Rudolph realizou em 1988 se destaca pelo elenco maravilhoso que inclui Keith Carradine, Linda Fiorentino, Genevieve Bujold, Geraldine Chaplin, Shawn Wallace, Kevin O'Connor e John Lone . A ação do filme se passa justamente na Paris dos anos 20 e conta uma história que tem relevância para o século 21, com sua visão sobre a vida urbana, amoralidade, poder, política, sexo, cobiça, e da arte como mercadoria. Keith Carradine é Nick Hart, um aspirante a artista que falsifica um Matisse, um Cézanne, Modigliani e se envolve com a ex-mulher, vivida por Linda Fiorentino. Hart e seus colegas personagens são retratados como tendo uma conexão de periféricos com círculo interno de Gertrude Stein, um círculo que inclui Ernest Hemingway e tantos outros personagens do filme de Allen.

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