segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O que ver de Haneke



Violência Gratuita (1997) – Susan­ne Lottar e Ulrich Mühe vivem um casal que vai passar férias no campo com o filho e é atacado por uma dupla de psicopatas. Provocativo, o longa tem cenas de violência que chocaram algumas plateias, mas que pautaram discussões sobre a crueldade dos agressores. Exibido no Festival de Cannes, saiu premiado no Fantasporto.


Código Desconhecido
(2000) – Um incidente numa movimentada avenida de Paris faz se entrecruzarem as trajetórias de cinco personagens que pareciam não ter nada em comum. Protagonizado por Juliette Binoche, o longa aborda a intolerância e a xenofobia na França. Ganhou o prêmio do júri ecumênico em Cannes.


A Professora de Piano (2001) – Melhor atriz (Isabelle Huppert), ator (Benoit Magimel) e prêmio do júri em Cannes, conta a história de uma professora de piano do Conservatório de Viena que tem 40 anos, não bebe, não fuma e mora com a mãe, mas que frequenta cinemas pornôs e peep-shows – até iniciar uma relação repleta de jogos perversos com um jovem aluno.

Caché (2005) – Um de seus longas mais perturbadores, em que Haneke volta a abordar o preconceito na França, agora aliado à desagregação familiar. A história, cheia de suspense, é a de um casal (Juliette Binoche e Daniel Auteuil) que se vê perseguido ao receber, pelo correio, vídeos e desenhos ameaçadores. Melhor direção, prêmio da crítica e do júri ecumênico em Cannes.

Funny Games U.S. (2007) – Refilmagem ipsis litteris do Violência Gratuita/Funny Games original, mas com atores de Hollywood (Tim Roth, Naomi Watts, Michael Pitt), reforça a ideia de provocação do título original – agora fazendo pensar sobre a própria natureza do projeto do cineasta

Onde nascem os monstros




Em seu mais recente longa, A Fita Branca, o diretor de Caché e A Professora de Piano especula as raízes do mal e a gênese do nazismo em um aparentemente pacato vilarejo alemão às vésperas da eclosão da I Guerra


A primeira impressão que tive no começo da exibição de A Fita Branca na tarde de quinta-feira ( 18 de fevereiro) no Lumiere Bougainville foi de estar diante de um filme de Ingmar Bergman. Talvez pelas características físicas dos personagens germânicos ou mesmo pelo fato da produção estar sendo exibida em preto e branco ( mais tarde fiquei sabendo que o filme foi totalmente filmado em cores e alterado para branco-e-preto durante a pós-produção). Quinze minutos depois do início da exibição as ações desenroladas na tela já tinham mostrado mais motivos para a justificar a opinião relacionada a proximidade de A Fita Branca com a obra do cineasta sueco. Como Ingmar Bergmam, o austro-alemão Michael Haneke explora a relação da regidez social com os princípios religiosos e seus complexos de culpa, só para citar alguns dos varios aspectos do filme que no dia 07 de março concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e que conta uma história em que a brutalidade é uma pulsão destrutiva escondida nos grotões mais obscuros da sociedade e da família..

Haneke nunca foi um cineasta fácil, mas sempre foi genial que explora a inaudita violência subjacente à sociedade contemporânea – especialmente a europeia em toda sua filmografia.Ele é um especialista em causar mal-estar no espectador. Se seus filmes são pesados, no entanto, muito se deve ao fato de terem uma densidade dramática monumental e de discutirem temas fundamentais do mundo contemporâneo – a xenofobia, a sociedade de aparências, o fetiche da violência. Foi assim com Caché, que em 2005 ficou com a Palma de Ouro do Festival de Cannnes. E em A Professora de Piano, que ficou com o Grande Prêmio do Júri em Cannes em 2001, onde ele abordou questões como intolerância, o ressentimento de classe, o excesso de conforto que cria pessoas incapazes de lidar com a realidade.


Em A Fita Branca, Haneke lança uma luz ao mesmo tempo reveladora e fugidia sobre o caldo de cultura que propiciou o florescimento do nazismo no seio da sociedade alemã. Não por acaso, o filme é ambientado na Alemanha pré-Primeira Guerra Mundial. Focado numa pequena vila que aparentemente ainda vive num regime plenamente feudalista, o roteiro do próprio diretor aborda uma série de incidentes violentos que tomam o lugarejo de surpresa sem que os habitantes consigam identificar o(s) autor(es) das ações. Já na cena de abertura, o médico local está voltando para casa, a cavalo, quando sofre um acidente misterioso. A seguir descobre-se que se tratou de uma armadilha, e que novos crimes ainda mais cruéis irão ocorrer.Enquanto tentam compreender exatamente o que está acontecendo, aqueles indivíduos são obrigados a lidar com suas próprias crises internas, desde confrontos entre pais e filhos a protestos mais chocantes sobre a natureza do trabalho e da remuneração oferecidos pelo Barão que domina o local. Em meio a tudo isso, o pacato professor da única escola da vila tenta trazer algum sentido para o que testemunha enquanto vive uma profunda paixão por uma jovem babá. É ele que narra a história. Sua posição é a de quem está adiante no tempo, olhando para trás, ao mesmo tempo lembrando e tentando entender o que se passou. As intenções de Haneke ficam claras quando a voz do narrador em off afirma, literalmente, que a forma como o povoado lida com aquilo tudo pode ter sido um prenúncio dos eventos que sucederiam no país todo, anos depois.





Aos poucos, a misteriosa série de violências cometidas indistintamente contra crianças e adultos do lugar insinua uma espécie de ritual de punição, cujos objetivos e algozes não se apresentam com clareza exata. O que cintila em A Fita Branca é a fonte de autoritarismo, rigor e insensibilidade onde a ideologia nazista bebeu e encontrou forças para disseminar-se. De maneira quase pedagógica, Haneke demonstra ao longo do filme como aquela Alemanha em microcosmo viva sob a égide desses valores, reproduzidos no âmbito do poder público, da escola, da igreja e do lar.

O roteiro também demonstra como não havia distinção de classe quanto à filiação a esses princípios – da aristocracia rural,representada pelo barão, ao camponês mais simplório, passando pela burguesia do médico e do clero, representada pelo pastor, todos os adultos do vilarejo impõem uma educação severa e brutal aos filhos. O Pastor vivido por Ulrich Tukur, por exemplo, surge como um verdadeiro monstro em seus esforços de “educar” os vários filhos através da repressão de qualquer manifestação de individualidade ou curiosidade – e a “fita branca” que dá título ao projeto e que ele encara como um símbolo de “inocência e pureza” é, na realidade, uma amarra do próprio espírito humano.

É impossível ignorar que os jovens vistos ao longo da projeção são integrantes daquela geração que finalmente levará o Nazismo ao poder, propiciando uma das maiores tragédias sociais, políticas e humanas da história. E não é difícil perceber que, de acordo com Haneke, esta catástrofe se tornou inevitável a partir do momento em que acompanhamos a juventude sendo corrompida pela amarga, ressentida e apodrecida geração anterior.



Ainda que a referência ao nazismo seja evidente, inclusive na etiquetação das pessoas como forma de segregá-las das demais – que seria repetida por Hitler com os judeus –, Haneke disse em uma entrevista publicada na revista americana New Yorker no final do ano passado, Heineke reiterou que prefere que A Fita Branca seja compreendido para além da especificidade da história: “Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles”.






Como no título do primeiro e impactante filme alemão rodado depois da II Guerra, Os Assassinos Estão Entre Nós (1946), o diretor lembra nessa obra-prima que é A Fita Branca que, a despeito de suas mais íntimas e singulares perturbações, os monstros também são fruto das sociedades em que convivem. E no filme, como na vida real,barbaridades são cometidas em nome da religião, dos bons costumes e do bem estar da sociedade.