quarta-feira, 17 de junho de 2009

A mágica por trás das câmeras






“Fazer um filme é como atravessar o velho oeste numa diligência. No começo você espera fazer uma viagem agradável. A partir de certo ponto você apenas reza para chegar vivo até o final."

(Ferrand, o diretor de Je Vous Presente Pamela
ou François Truffaut em A Noite Americana)




Descobri, há pouco mais de um mês que uma aula de semiótica e mais especialmente sobre as funções da linguagem pode ser divertida. Gostei principalmente da parte da aula que aborda a metalinguagem, um tipo de recurso usado por escritores, dramaturgos e diretores de cinema para falar da própria linguagem com que trabalham.

Considerando que o cinema é uma forma de linguagem e que esta é um meio sistemático de comunicação e que a crítica cinematográfica faz parte de minha vida profissional desde os anos 70, decidi investigar mais a fundo como a linguagem cinematográfica foi chamada para falar de si própria desde os primórdios do cinema, enfatizando o tratamento metalinguistico dado ao cinema, especialmente em produções que trabalham o filme dentro do filme.

A verdade é que o cinema é uma arte reflexiva desde as tomadas demonstrativas dos irmãos Lumière em uma convenção de fotógrafos de 1895. E analisando a filmografia mundial, é difícil dizer qual filme não faz referência ao próprio meio. Desde o início da indústria cinematográfica, os produtores e diretores viram no recurso da metalinguagem uma poderosa arma para fazer com que o público se identificasse com a história do filme e assim voltasse sua atenção para o cinema. O papel da metalinguagem no início do desenvolvimento foi importante para que o público, cada vez mais, pudesse se identificar com a linguagem e as técnicas cinematográficas utilizadas pelos cineastas. Em muitos filmes onde esse recurso era usado, o espectador tinha a sensação de estar participando da produção.

Thomas Edison, um dos precursores do cinema, foi quem oficializou a brincadeira. Em The Countryman and Cinematograph (1901) de Robert W. Paul, cineasta da companhia de Edison, usou a metalinguagem para retratar o fascínio da platéia pelo cinema, que estava apenas "engatinhando" na época. A cena do filme: um homem está diante de uma tela de cinema. Nela surge a imagem de um trem vindo em sua direção, o homem se desespera com a cena e sai correndo. Com essa sequência, Paul fez referência a um dos primeiros filmes exibidos no cinema, A Chegada do Trem na Estação (1895), dos irmãos Lumière, e à reação da platéia que assistia ao filme naquela época.

Those Awful Hats, que D.W. Griffith realizou em 1909, com seu traço de crônica do cotidiano acompanha os transtornos que as senhoras e seus gigantescos chapéus causavam aos demais espectadores, em uma sessão de cinema. Além da querela entre os espectadores, podemos também acompanhar o filme que passa na tela do cinema/personagem, que é um filme de argumento do próprio Griffith, realizado no ano anterior. O ritual do espetáculo cinematográfico está em evidência e é sobre ele que o filme constrói seu fascínio. Mais recentemente tivemos Trovão Tropical, produção que coloca em cena os bastidores de um filme de guerra onde absolutamente tudo dá errado e os atores começam a adquirir a personalidade dos personagens que interpretam.

Com a chegada da televisão, nos anos 50, o cinema começou a utilizar a metalinguagem para fazer uma revisão de sua história e até uma auto-crítica em relação ao seu passado. Através de filmes como Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder e Assim Estava Escrito (1952), de Vincent Minnelli, os bastidores da indústria cinematográfica e os seus realizadores se tornaram o alvo das críticas ferinas dos cineastas.

Dos filmes metalinguísticos que fazem uma reflexão sobre o cinema, o meu predileto é A Noite Americana, de François Truffaut. Oscar de melhor filme estrangeiro de 1974, A Noite Americana é apaixonante principalmente porque nele a metalinguagem não é usada apenas como um recurso temático envolvendo o cinema. Aqui, o filme dentro do filme serve apenas como uma espécie de pano de fundo para que Truffaut possa evidenciar os principais problemas de um diretor em uma produção e, por isso mesmo, pode ser visto tanto como ficção como documentário. O próprio François Truffaut interpreta um diretor de cinema, Ferrand, que dirige um filme intitulado Je Vous Presente Pamela (Eu lhe apresento Pamela), que conta a história de uma jovem inglesa que se apaixona pelo sogro e foge com ele.

A metalinguagem está presente sob diferentes aspectos no filme de Truffaut. Em alguns momentos do filme o espectador não sabe se está diante de uma cena do filme ou do filme dentro do filme. Confusão esta que só é sanada por uma mudança de câmera. A primeira cena da produção, por exemplo, mostra uma rua movimentada. A câmera focaliza um homem que se desloca da direita para a esquerda e depois outro que se move da esquerda para a direita. Quando os dois se encontram, um dá uma bofetada na cara do outro e ouve-se em off: “Corta”. A câmera pára de focalizar os dois homens e mostra o diretor. Só então o espectador percebe que a cena inicial não era a do filme A Noite Americana, mas sim de um filme dentro do filme. Enquanto o assistente de direção dá as ordens para regravar a mesma cena, o espectador vê todo o set de gravação e o diretor, instruindo os atores na cena do tapa. Em seguida, a mesma cena é mostrada, mas agora o destaque fica para uma voz em off que comanda os atores: “Continue andando, mulher com o cachorro”, “Ande mais rápido, Alphonse”.

O fato de o próprio Truffaut estar interpretando o diretor tem sua representação metalinguística. O diretor, que passou da crítica cinematográfica dos Cahiers du Cinema para a cadeira mis importante do set, tinha seu próprio estilo de dirigir e eram suas características que ele queria que o diretor de Je Vous Presente Pamela tivesse. A única caraterística que difere Ferrand – personagem fictício – de Truffaut é o aparelho de surdez que para Truffaut simbolizava a importância da comunicação oral e da relação fundamental com a linguagem que um diretor deve ter.

Outra questão interessante de A Noite Americana é a forma com que a produção oferece ao público os bastidores da filmagem de Je Vous Presente Pamela. O filme retrata o dia a dia artificial das comunidades formada por atores, maridos, amantes, produtores e técnicos de filmagem durante o processo de filmagem. Aqui, mais importante do que o filme que está sendo feito é a rotina da filmagem, a vida no set. É um making off de uma produção dos anos 70 que, se realizado nos dias atuais, faria parte de qualquer extra do título, quando lançado em DVD.

Em A Noite Americana o público reconhece todos os tipos característicos do cinema mundial. Ferrand (Truffaut) é um diretor que sonhava em se transformar em um novo Orson Wells. Alphonse (Jean-Pierre Leaud) é o jovem inexperiente e apaixonado por uma jovem da equipe técnica. Severine (Valentina Cortese) é a diva alcoólatra que esquece as falas e anda sem rumo pelo cenário de Je Vous Presente Pamela. Julie (Jacqueline Bisset) é estrela romântica e sexy, recém casada com um médico bem mais velho do que ela – uma referência à paixão de Pámela pelo sogro. E finalmente Alexandre (Jean-Pierre Aumont) é o astro maduro que resolve sair do armário.

O mais interessante em A Noite Americana, no entanto, é a forma com que o filme estabelece uma relação entre o cinema e a vida. A interação vida real/fictícia aparece na relação entre os atores e os personagens de Je Vous Presente Pamela. Um exemplo é a passagem na qual os atores estão na sala de projeção vendo uma cena de Je Vous Presente Pamela. Esta mostra Severine tentando convencer o filho (Alphonse) a esquecer a traição de sua mulher (Pámela). Neste instante a câmera pára de focalizar a tela e focaliza Alphonse (o ator), que faz cara de indignado ao ver sua namorada Liliane flertando com o fotógrafo. Tanto o ator quanto o personagem vivem a mesma situação, numa mescla de realidade e ficção.

O recursode reposicionar a câmera é fundamental para se distinguir o que faz parte de A Noite Americana e o que pertence ao Je Vous Presente Pamela. Uma cena representativa é a de Stacey, secretária de Alexandre, que está na piscina quando o seu chefe pede que ela digite uma carta – cena de Je Vous Presente Pamela. Em seguida, a visão do espectador é transferida para outra câmera através da qual vemos todo o aparato técnico montado sobre a piscina para a realização da cena.

Outra cena importantíssima no que se refere ao posicionamento de câmera é aquela em que a atriz/personagem Severine erra várias vezes. Primeiro ela não se lembra das falas e, em seguida, erra a porta pela qual deveria sair. Esta sucessão de erros é importante porque possibilita ao espectador ver a mesma cena de diferentes ângulos. Primeiro, ela é apresentada sob a ótica que o espectador de Je Vous Presente Pamela veria. Depois, a câmera se afasta e o espectador tem a visão da equipe técnica que a acompanha. Em seguida Truffaut apresenta a visão que Ferrand tem de Alexandre (companheiro de cena), e do cinegrafista por trás do cenário. O espectador é convidado não só a assistir a cena tal qual é apresentada em Je Vous Presente Pamela, mas também a presenciar todos os recursos cinematográficos utilizados para a constituição desta.

Uma outra forma de mostrar o amor e a dedicação sacerdotal ao cinema, é a forma como a própria equipe se relaciona com o cinema. Alphonse em qualquer folguinha diz que vai ao cinema. Em outro momento a equipe quase toda marca de ir ao cinema, mas a assistente de direção no último momento não pode ir, pois tem que ajudar o diretor. Enquanto está no quarto escrevendo o roteiro do dia seguinte, Ferrand confere no jornal o que está sendo exibido nos cinemas da cidade, concluindo que Godfather está arrasando. É uma equipe que preenche seu dia (e muitas vezes a noite também!) com cinema, horas e horas de filmagem, ensaios, construção de cenários e figurinos, e nas horas vagas o que eles fazem? Vão ao cinema. O cinema é, enfim, um trabalho do qual eles não querem descanso, não querem se ver livres e distantes dele.

Truffaut também usa seu filme para prestar homenagem aos diretores que marcaram a sua vida. A cena mais representativa e poética é a que Ferrand está discutindo com o produtor a gravidez da personagem Stacey e o auxiliar de direção lhe traz um pacote. Neste mesmo instante o maestro responsável pela trilha musical de Je Vous Presente Pamela liga e pede que o diretor ouça a música que servirá de fundo para a festa à fantasia. Ferrand deixa o fone a uma distância do ouvido, permitindo que o espectador também ouça a música. Enquanto toca a música, Ferrand tira do pacote livros que tratam de outros diretores e os joga sobre a mesa. São eles: Buñuel, Carl Theodor Dreyer’s, Lubitsch, Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard, Hitchcock, Rossellini, Howard Hawks e Bresson. Outros cineastas também se fazem presentes ainda que simbolicamente, através de uma tomada da placa de uma rua Jean Vigo, de um pano bordado com o nome de Jean Cocteau, colocado numa parede.

Enfim, A Noite Americana põe às claras o quanto o cinema utiliza inúmeras técnicas de ilusionismo para se tornar uma verdadeira arte da enganação. As cenas em que a equipe de produção fabrica tempestades e nevascas artificiais, ou o jeito que arrumam pra filmar o desastre automobilístico, no contínuo esforço de fazer o fake parecer autêntico, diverte e instrui tanto quanto os melhores making-offs que já se viu. A própria expressão “Noite Americana” se refere a uma técnica especial de fotografia para o cinema. O uso dessa técnica pode fazer com que cenas filmadas durante o dia, sob a luz do sol, pareça se passar à noite.

Mostrando o quanto é difícil tornar verossímil o artificial, o filme acaba por fazer com que o cinéfilo admire ainda mais o esforço de todos os envolvidos com o cinema e a fabricação desses mundos artificiais que são projetados na tela de uma sala escura. E apesar de ser um filme de ficção, e com um roteiro muito bem bolado, A Noite Americana mostra Truffaut engajado numa certa visão do cinema que me parece, paradoxalmente, anti-cinematográfica, como se dissesse que, apesar de tudo, o cinema não importa tanto assim: a vida vale mais, e a vida é o mais urgente. De certo modo, o filme deixa o cinéfilo com a certeza de que a vida é muito mais interessante do que um filme costuma ser, e que as pessoas reais são muito mais dignas de serem filmadas e terem suas vidas expostas do que quaisquer personagens. Num estilo quase documental o filme abre ao espectador as portas para o filme que o público não vê, quando vê um filme. Revela truques, conta segredos, mostra como muitas vezes a cena ou a fala que se julga geniais não dependeram da presença de nenhuma musa inspiradora ou de idealismos românticos. Em síntese, Truffaut prova que muitas vezes o processo de criação de uma obra artística é bem mais interessante do que seu resultado final. No caso do cinema, mais prazeroso, mais cansativo, mais demorado, mais apaixonante, mais estressante, mais enriquecedor.



Ficha Técnica
Negrito
Nome: A Noite Americana
Nome original: La Nuit Américaine
Cor filmagem: Colorida
Origem: França - Itália
Ano produção: 1973
Gênero: Drama
Duração: 115 min
Direção: François Truffaut
Elenco: Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Dani, Alexandra Stewart, Jean-Pierre Léaud, François Truffaut.